"As regiões traiçoeiras e inexploradas do mundo não se encontram nos continentes ou nos mares; estão nas mentes e nos
corações dos homens."(Saint Exupéry)

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Por uma outra civilização: "Se os tubarões fossem homens".....

Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais.

Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias, cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim que não morressem antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.


Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a guela dos tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos.


Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência. Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista e denunciaria imediatamente aos tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações. Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre sí a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros.

As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que entre eles os peixinhos de outros tubarões existem gigantescas diferenças, eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro.

Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos Da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói. Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, havia belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nos quais se poderia brincar magnificamente.


Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelas dos tubarões.

A música seria tão bela, tão bela que os peixinhos sob seus acordes, a orquestra na frente entrariam em massa para as guelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos .

Também haveria uma religião ali.

Se os tubarões fossem homens, ela ensinaria essa religião e só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar e os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiro da construção de caixas e assim por diante.

Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.

Sobre o(a) autor(a): Bertold Brecht (1898-1956), nascido em Augsburgo. Escritor e dramaturgo alemão, além de grande teórico teatral. Desde menino escrevia poesias de forte conteúdo social. Foi perseguido pelos nazistas pelo seu comunismo militante.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Por uma outra Geopolítica Européia: A crise na Europa e uma esquerda "desorientada"...


Tudo isso deixa extremamente indignados muitos eleitores da esquerda na Europa, cada vez mais induzidos – como mostraram na Espanha as eleições municipais e autonômicas do dia 22 de março – a adotar três formas de rechaço: o abstencionismo radical, o voto na direita populista ou o protesto indignado nas praças.

Naturalmente, o ex-chefe do FMI e ex-candidato socialista à eleição presidencial francesa de 2012, acusado de agressão sexual e de tentativa de violação pela camareira de um hotel de Nova York no dia 14 de maio, goza de presunção de inocência até que a justiça estadunidense se pronuncie. Mas a atitude mostrada, na França, pelos líderes socialistas e muitos intelectuais de “esquerda”, amigos do acusado, precipitando-se diante de câmaras e microfones, para fazer imediatamente uma defesa incondicional de Strauss-Kahn, apresentando-o como o principal prejudicado, evocando complôs e “maquinações”, foi realmente vexatória.

Não tiveram nenhuma palavra de solidariedade ou de compaixão para com a suposta vítima. Alguns, como o ex-ministro socialista da Cultura, Jack Lang, em um reflexo machista, não hesitaram em diminuir a gravidade dos supostos fatos declarando que “afinal de contas, ninguém morreu” (1). Outros, esquecendo o sentido da palavra “justiça”, se atreveram a pedir privilégios e um tratamento mais favorável para seu poderoso amigo, pois, segundo eles, não se trata de “um acusado como outro qualquer” (2).

Tanta desfaçatez deu a impressão de que, no seio das elites políticas francesas, qualquer que seja o crime de que se acuse a um de seus membros, o coletivo reage com um respaldo articulado que mais parece uma cumplicidade mafiosa (3). Retrospectivamente, agora que ressurgem do passado outras acusações contra Strauss-Kahn de abuso sexual (4), muita gente se pergunta por que os meios de comunicação ocultaram esse traço da personalidade do ex-chefe do FMI (5). Por que os jornalistas, que não ignoravam as queixas de outras vítimas de assédio, jamais realizaram uma investigação de fundo sobre o tema. Por que se manteve os leitores na ignorância e se apresentou a este dirigente como “a grande esperança da esquerda” quando era óbvio que seu calcanhar de Aquiles podia, a qualquer momento, truncar sua ascensão.

Há anos, para conquistar a presidência, Strauss-Kahn recrutou brigadas de comunicadores de choque. Uma de suas missões consistia em impedir também que a imprensa divulgasse o luxuosíssimo estilo de vida do ex-chefe do FMI. Desejava-se evitar qualquer inoportuna comparação com a vida esforçada que levam milhões de cidadãos modestos lançados ao inferno social em parte precisamente pelas políticas dessa instituição.

Agora as máscaras caem. O cinismo e a hipocrisia surgem com toda sua crueza. E ainda que o comportamento pessoal de um homem não deva servir para prejulgar a conduta moral de toda sua família política, é evidente que contribui para se perguntar sobre a decadência da socialdemocracia. Ainda mais quando isso se soma a inúmeros casos, em seu seio, de corrupção econômica, e até de degeneração política (os ex-ditadores Ben Ali, da Tunísia, e Hosni Mubarak, do Egito, eram membros da Internacional Socialista!).

A conversão massiva ao mercado e à globalização neoliberal, a renúncia à defesa dos pobres, do Estado de bem estar e do setor público, a nova aliança com o capital financeiro e a banca, despojaram a social-democracia europeia dos principais traços de sua identidade. A cada dia fica mais difícil para os cidadãos distinguir entre uma política de direita e outra “de esquerda”, já que ambas respondem às exigências dos senhores financeiros do mundo. Por acaso, a suprema astúcia destes não consistiu em colocar a um “socialista” na direção do FMI com a missão de impor a seus amigos “socialistas” da Grécia, Portugal e Espanha os implacáveis planos de ajuste neoliberal? (6).

Daí o cansaço popular. E a indignação. O repúdio da falsa alternativa eleitoral entre os dois principais programas, na verdade gêmeos. Daí os protestos nas praças: “Nossos sonhos não cabem em vossas urnas”. O despertar. O fim da inação e da indiferença. E essa exigência central”: “O povo quer o fim do sistema”.

Notas:

(1) Declarações ao telejornal das 20h na cadeia pública France 2, dia 17 de maio de 2011.
(2) Bernard-Henri Lévy, “Defesa de Dominique Strauss-Kahn”, e Robert Badinter, ex ministro socialista da Justiça da França, declarações para a rádio pública France Inter, 17 de maio de 2011. (3) Este coletivo já deu provas de sua tremenda eficácia midiática quando conseguiu mobilizar em 2009 a opinião pública francesa e as autoridades em favor do cineasta Roman Polanski, acusado pela Justiça estadunidense de ter drogado e sodomizado, em 1977, uma menina de 13 anos. (4) Em particular, a formulada pela escritora e jornalista Tristane Banon. Leia-se: “Tristane Banon, DSK et AgoraVox: retour sur une omertà médiatique”, AgoraVox, 18 de maio de 2011. (5) No próprio interior do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn já havia sido protagonista, em 2008, de um escândalo por sua relação adúltera com una subordinada, a economista húngara Piroska Nagy. (6) “Seu perfil ‘socialista’ permitiu enfiar pílulas amargas na garganta de muitos governos de direita ou esquerda, e explicar aos milhões de vítimas das finanças internacionais que a única coisa que tinham que fazer era apertar o cinto à espera de tempos melhores”, Pierre Charasse, “No habrá revolución en el FMI”, La Jornada, México, 22 de maio de 2011. ¹Ignacio Ramonet fue director de Le Monde Diplomatique entre 1990 y 2008.

Tradução: Katarina Peixoto

Texto também presente no Blog espaço Banal

http://www.espacobanal.com.br/2011/06/carta-maior-crise-na-europa-e-uma.html

Adaptação ao Blog por Daniel Dreamweaver

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Por um outro significado das coisas: "A. C. Grayling e o desmascaramento do Capitalismo"

 
"O problema com o sistema de lucro sempre foi ser substancialmente pouco lucrativo para a maioria das pessoas".
E. B. White
Poucas pessoas afirmariam, pelo menos abertamente, não desejar que todas as sociedades fossem justas e decentes. Claro que é mais fácil dizer que as sociedades deviam ser assim do que torná-las assim, especialmente numa era de capitalismo de mercado livre mundial que entrega a boa vida à maior parte dos residentes nos países industrializados avançados — países que, por conseguinte, são também o centro do poder e influência mundiais, o que faz não constituir surpresa que as virtudes do seu modo de vida económico surjam como inquestionavelmente superiores às alternativas. No Ocidente rico, é agora ortodoxo pensar que a ideologia do mercado livre ganhou a discussão — e, portanto, compreensivelmente, que o futuro, tal como o presente, lhe pertence — daí a declaração de Francis Fukuyama de que “a história chegou ao fim”. As vozes discordantes, por muito eloquentes e bem informadas, mal se ouvem no meio da autoconfiança retumbante desta opinião. Mas a história contada pelas vozes discordantes é profundamente perturbante e aponta argumentos poderosos a favor de uma maior justiça e sustentabilidade na economia mundial.
O capitalismo precisa do crescimento contínuo da produção e, portanto, do consumo, para se sustentar a si mesmo. Os benefícios daí colhidos sob a forma de tecnologia e melhoria das condições de vida são óbvios e palpáveis no Ocidente rico. Mas, dizem as vozes discordantes, o preço está a revelar-se demasiado elevado, especialmente em termos de danos infligidos ao ambiente, da dívida paralisante do terceiro mundo, das disparidades insustentáveis entre ricos e pobres, e do efeito destrutivo provocado nas comunidades pela transformação das pessoas em bens e das relações sociais em transacções comerciais. As vozes discordantes conseguem citar incessante e perturbadoramente números sobre danos ambientais, pobreza, desperdício e exploração do terceiro mundo. Os factos sobre a horrenda perda anual de área da floresta virgem, as crianças asiáticas que cosem, por uns poucos cêntimos diários, as bolas de futebol com que as nossas próprias crianças brincam e as fomes dos países do terceiro mundo devidas à substituição da agricultura de subsistência por culturas de exportação, são já bem conhecidos. Menos conhecidos são factos como o homem mais rico do México ter mais dinheiro do que os dezassete milhões de seus compatriotas mais pobres todos juntos e os pagamentos anuais das dívidas de muitos países pobres ultrapassarem em muito o que eles podem gastar em saúde e educação. Considerações deste tipo revelam de forma violenta a injustiça e instabilidade da ordem económica mundial, obrigando-nos a perguntar não se deverá esta ser alterada, mas como.
Os defensores do capitalismo de mercado mundial fazem assentar a sua fé em duas coisas: a capacidade que os próprios mercados têm de reparar, no longo prazo, as piores iniquidades e desigualdades que geram, e a “solução técnica”, na qual a inovação tecnológica futura resolverá os problemas criados pelas tecnologia e indústria actuais. Por exemplo: os automóveis e as lâmpadas eléctricas do futuro consumirão menos energia do que os actuais e, portanto, não importa que actualmente estejamos a consumir os nossos recursos combustíveis a uma velocidade que parece insustentável.
Os críticos não se impressionam com estes argumentos. Afirmam que o mercado existe para que aqueles que controlam os recursos possam colher lucros, o que constitui o seu único objectivo e raison d’être. Ao deixar o mundo nas mãos das forças impessoais da oferta e da procura, o mercado ignora as consequências que isso tem naqueles, muitos, que meramente servem os seus interesses, não partilhando os seus lucros. Para alcançar a justiça social, dizem eles, precisamos de uma economia que coloque no seu centro os interesses humanos. Esta economia incorporaria princípios de protecção ambiental e cultural, de justiça económica para indivíduos e povos, e de regulamentação da actividade de empresas multinacionais.
Foram avançadas muitas teorias relativas a uma actividade económica sustentável, e, por conseguinte, mais contida e equilibrada, mas nenhuma deverá ser adoptada enquanto a actual ordem conceder tamanhos lucros a uns e revelar tantos atractivos a outros. Qualquer alteração no sentido de inverter as tendências desenfreadas da ordem contemporânea exigiria alterações substanciais de atitudes e práticas, de forma que é difícil ver como isso poderia acontecer, a menos que alguma catástrofe mundial nos obrigasse a fazê-lo.
Algumas pessoas afirmam que só um regresso às pequenas comunidades autogovernadas oferece alguma esperança de um futuro mais justo e sustentável. Têm em mente a “cultura campesina” regional, auto-sustentada, que tem existido desde os tempos primitivos — combinação social descrita por um historiador como sendo “o maior feito da humanidade”. Mas isto revela a debilidade fatal existente em todos os argumentos deste género: recomendar, como reacção às preocupações genuínas suscitadas pelos piores aspectos do capitalismo de mercado livre, um regresso à vida campesina, ou, na verdade, a qualquer sistema de consumo reduzido, crescimento limitado, estase e contenção, não pode ser encarado como uma opção séria, não apenas por aqueles, relativamente poucos, que retiram benefícios do capitalismo, mas também por aqueles, muito numerosos, que aspiram a juntar-se-lhes.
Os críticos da economia do mundo actual estão sujeitos a ser tendenciosos nas suas críticas, pois há verdadeiramente muito a deplorar nos seus efeitos sobre o mundo natural e social e na sua injustiça chocante. Têm razão, ao dizer que é necessário fazer alguma coisa. Mas, como estas propostas insatisfatórias ilustram, ainda se aguarda a apresentação de uma saída convincente para o dilema.
No entanto, também há aqueles que não só defendem como até enaltecem a ordem do mercado livre e o consumismo que a alimenta. A ortodoxia sociológica afirma que o consumismo equivale a opressão: o marketing habilidoso tem-nos manipulado, diz a ortodoxia, deixando-nos num papel de vítimas passivas, consumindo perpetuamente e sem objectivo quantidades sempre crescentes, a mando de uma indústria publicitária que nos cria falsos desejos, levando-nos a acreditar que comprar um objecto equivale a comprar a felicidade. Os estudos acerca do consumismo e daquilo que ele envolve — marketing, marcas, moda, compras, embalagens, lixo, poluição, rivalidade social, mentalidade do descartável e transformação do valor em bem — constituem uma leitura perturbante porque sugerem que os mecanismos de persuasão e coerção subjacentes ao capitalismo são fundamentalmente malignos.
A ortodoxia diz-nos que os executivos do marketing transformam-nos em criaturas ansiosas mas dóceis, a quem falsamente se faz crer que o caminho para o paraíso passa por comprar coisas. Imensos comentadores distintos — entre eles Thorstein Veblen, John Kenneth Galbraith, Vance Packard, Ralph Nader e os filósofos da Escola de Frankfurt — condenam o desperdício, a sandice, a falsa consciência da sociedade consumista e a sua transformação das pessoas em vítimas, que descrevem como uma conspiração que nos empurra para o trabalho, para podermos comprar as migalhas de prazer que o sistema deixa cair das mesas daqueles cujos produtos desnecessários compramos. E, entretanto, somos inundados de lixo e poluição, enquanto nos sentamos à luz tremeluzente dos anúncios televisivos, comendo os nossos jantares insalubres preparados nos microondas.
Contudo, a informação que apoia esta ortodoxia é ambígua. Outra informação muito diferente indica que os consumidores são inteligentes nas suas escolhas e que as compras constituem uma profunda fonte de significado no mundo moderno. A ortodoxia parece implicar que, se os anunciantes deixassem as pessoas em paz, elas começariam todas a ler Wittgenstein e a ouvir Mahler. Pois bem, não o fariam. Elas querem Coisas, querem Objectos, querem comprar e possuir. E, como sugerem as leis da oferta e da procura, é o consumidor que aponta o caminho, ao passo que os produtores e os anunciantes seguem no seu encalço, oferecendo as consolações e as salvações (a linguagem religiosa vem naturalmente à ideia) que as marcas e as alegrias da propriedade fornecem.
Portanto, talvez o amor pelo consumo manifestado pelos consumidores não seja tão desprezível. Os defensores deste afirmam que consumir é a paixão e a criatividade da vida contemporânea. É através da compra e posse de Coisas, dizem eles, que nos definimos a nós próprios, interpretamos a nossa sociedade e conferimos coerência às nossas vidas. Não desejamos guiar um automóvel, mas sim um Ferrari; não desejamos beber champanhe, mas sim Veuve Clicquot; não desejamos vestir um fato, mas sim um fato Armani. Possuí-los confere-nos significado. A linguagem das marcas, produtos e serviços é a linguagem partilhada da nossa comunidade. Os logótipos e anúncios são os emblemas culturais da nossa época, sinais que nos ajudam a andar pelo mundo e a avaliar aquilo que nele encontramos. Tanto a linguagem como as imagens nos oferecem aquilo que em tempos a religião ofereceu — uma estrutura comum. Mas, enquanto elo comunitário, dizem os seus defensores, é mais democrático e igualitário: os consumidores não são idiotas, não são receptores passivos de dogmas pregados por um clero; são os sacerdotes de si mesmos, sabem o que querem, e estão a obtê-lo.
Consideremos a lógica das marcas. Por que razão as pessoas compram e usam marcas dispendiosamente reconhecíveis? Porque isso lhes permite reclamar uma posição social, prestígio, confiança e faculdade de resolução. Essa é a chave do consumismo: a aquisição dos veículos tangíveis compra precisamente a posse desses intangíveis.
O argumento de que o consumo não constitui opressão — que os consumidores são felizes, que o consumo confere satisfação e dá sentido à vida — é exaltantemente robusto. Mas é difícil não deixar de pensar que, se a felicidade é o que interessa, seria possível alcançar o mesmo grau de felicidade mais rápida e economicamente colocando uma droga adequada nas reservas aquíferas. E deixa de fora uma questão tão familiar que se tornou há muito o lugar-comum dos lugares-comuns: de todas as coisas que vale a pena ter na vida — nomeadamente gentileza, sabedoria e afectos humanos —, nenhuma se encontra à venda nos centros comerciais do mundo.

A. C. Grayling

Retirado do livro O Significado das Coisas, de A. C. Grayling (Gradiva, 2003)